Conversa ao pé do fogo.
Do destino ninguém foge.
Certa vez, há muito tempo atrás, fui convidado por um Grupo Escoteiro
de uma pequena cidade do interior, para proferir uma palestra sobre os Valores
do Escotismo na sociedade. Era um Grupo simples, com um efetivo excelente e uma
alegria e amizade que não se encontra facilmente aonde eu vou. Moças e rapazes
sorridentes, me olhando respeitosos e dentro de seus olhos sentia o verdadeiro
“Espírito Escoteiro” tão procurado por todos nós.
Durante a palestra, em um salão paroquial repleto, composto por
muitos pais, amigos simpatizantes e até alguns membros da sociedade política da
cidade, observei um chefe, que permaneceu encostado em uma parede, me olhando
com olhos ávidos, prestando uma atenção canina, que fez com que me perdesse
algumas vezes na continuidade da palestra. Este chefe, aparentando uns 50 anos,
tinha um aspecto não muito simpático, apesar de estar muito bem uniformizado,
com o caqui tradicional (um pouco velho, mas limpo e bem passado) um chapéu de
abas largas bem posto, meiões dentro dos padrões e o lenço impecavelmente bem
dobrado. Seu semblante deixava a desejar. Sua boca parecia inchada e uma grande
mancha no rosto não dava um ar atraente a sua pessoa.
Cabelos negros, lisos e compridos, contidos por um “rabo de
cavalo” simples, dava uma conotação estranha e extravagante. Tinha uma maneira
de andar meio bizarra com os braços abertos, ombros curvados, mas seu sorriso
era contagiante. Após a palestra, fui dar uma volta no pátio onde se realizava
as reuniões, e vi ali um bom escotismo sendo praticado por uma alcatéia mista,
duas tropas uma masculina e uma feminina e uma tropa sênior composta de uma só
patrulha.
O chefe em questão estava em pé, observando o andamento das
reuniões, sempre curvado, e esperando que alguém o chamasse. Estranhei que ele
não participasse diretamente de alguma sessão. O Chefe do Grupo que me
acompanhava vendo minha curiosidade explicou:- Apareceu aqui há uns quatro
anos. Fica sempre afastado, pois sabe que sua fisionomia assusta os jovens e
também os adultos. Com o tempo estamos nos acostumado a ele. Remo era o seu
nome, o sobrenome ninguém sabia. O uniforme foi doado por um chefe que mudou
desta cidade e acho que a doação foi como o descobrimento de uma grande pessoa.
Sua alegria, mesmo com um sorriso torto, contagiava.
Sempre tivemos receio de convidá-lo para uma das sessões. Não
fizemos sua promessa, achamos que não deveríamos. Os pais não o viam com bons
olhos. Muitos ainda o julgavam pela fisionomia. Até eu acreditei que fosse
analfabeto e você sabe a dúvida em colocar alguém assim em uma sessão é
preocupante. Ele é um dos primeiros a
chegar à sede, faz a limpeza com esmero, fica a porta esperando que alguns de
nós peçamos alguma coisa e é de uma vassalagem preocupante. No inicio das
reuniões sempre está pronto a colaborar com a chefia, buscando materiais, e
limpando o pátio quando alguém joga algum ao chão ou mesmo depois das reuniões.
Muitas vezes quando venho à noite à sede, o encontro sentado no
meio fio, como, a saber, que eu viria. Entra comigo e enquanto faço minhas
obrigações ou mesmo aguardo outros para alguma reunião, ele está a ver figuras
sem parar na pequena biblioteca escoteira que temos aqui no grupo. Claro que
sempre dou um livro para ele levar para casa, sempre com muitas gravuras. Ele
sorri e me agradece muito. Enfim, nos acostumamos com ele, como se acostuma com
um... Ele ia dizer cão amigo, mas preferiu se calar. Acho que não era sua
intenção desmerecê-lo.
O pouco que sabemos é que trabalha no moinho do português (muito
conhecido na cidade) e mora em um pequeno quarto alugado num bairro afastado. Achei
interessante o fato. Para mim inusitado. Os anos se passaram e de novo voltei
ao Grupo citado e agora não me lembro bem o motivo. Foi num verão atraente, mas
cujo calor ameaçava passar dos 40º. Cheguei pela manhã, viajando boa parte da
noite em um ônibus de carreira. Após os comprimentos de praxe, conversava com
um ou outro escotista e foi então que dei falta do Chefe Remo. Seu lugar de
sempre onde ficava encostado a parede estava vazio. Vi com espanto lagrimas nos
olhos do chefe do grupo e a tristeza nos demais quando perguntei a respeito.
- Ele desapareceu um dia da sede e não voltou mais. Sentimos uma
grande falta. Não tínhamos mais aquele que limpava que ficava a nossa
disposição como um serviçal sem salário, nunca reclamava, estava sempre pronto
a ajudar e então chegamos à conclusão que não demos o valor necessário ao um
grande homem, a um grande Escotista que foi sem nunca ter sido. Todos, sem
exceções sempre esperavam chegar à sede e encontrá-lo ali, subserviente, pronto
a ajudar e nunca esperando nada em troca. Até mesmo os jovens perguntavam por ele. Antes
do seu desaparecimento ele já participava de pequenas atividades, mais como
colaborador e assim a admiração pela sua fidalguia estava crescendo no coração
de todos.
Esperamos duas semanas e fomos ao moinho onde ele trabalhava. Ficamos
sabendo que ele desapareceu também de lá. Seu Manuel dono do moinho foi com a
policia ao quarto dele e nada encontrou. Convidou-nos a ir até lá para vermos
como era. Meu amigo foi uma punhalada no coração, pois o quarto dele era uma
linda sede escoteira, com um quadro enorme de BP. Quadro de nós, de sinais,
bandeirolas de semáforas penduradas na parede, uma colcha bordada com flor de
Liz jazia em sua cama e uma linda Bíblia aberta na pagina onde se lia o salmo
jazia acima de uma pequena cômoda. Ficamos chocados com tudo. Nunca esperávamos
isto.
Seu quarto era muito
limpo e bem arrumado. Não havia cartas, papeis nada que pudesse identificar de
onde era e para onde foi. O tempo passou não mais que cinco meses e ficamos
sabendo que ele tinha sido atropelado em uma cidade próxima, e imprensado a um
poste tinha morrido na hora. Mesmo com sua identidade não sabiam de onde era e
de onde vinha. O enterraram como indigente. Ele estava com o cinto escoteiro e
um dos investigadores resolveu fazer uma consulta à direção escoteira do
estado. Em vão. Ele não tinha registro lá. Alguém sugeriu consultar o Grupo
Escoteiro mais próximo. Conversa daqui e dalí se passaram vários meses. Um pai
soube e comentou do desaparecimento do Chefe Remo. Ele o conhecia e recordava
como todos ficaram preocupados. Ao confirmar a identidade, não havia mais
dúvida.
Foi um choque para todos nós. Não sei por que, se foi uma boa
idéia, mas reunimos todo o grupo e um dia de domingo à tarde fomos até a cidade
onde havia sido sepultado. Em volta de sua campa simples, fizemos uma oração,
cantamos a cadeia da fraternidade, todos chorando, engasgados dizendo com
dificuldade que não era mais que um até logo, não era mais que um breve adeus,
pois bem cedo junto ao fogo, tornaríamos a nos ver. Ali, com os olhos marejados
de lágrimas, vimos um beija flor azulado, sozinho, batendo asas em volta do seu
tumulo, e enquanto permanecemos ele também ficou, sem pousar, sem cansar. Não
digo que seria um sinal, nada disto, eu mesmo não acredito. Sou meio céptico
com essas coisas. Um fato não pode ser esquecido, o chefe Remo merecia ter tido
muito mais de nós. Pelo menos sua promessa.
Voltamos tristes, silenciosos. Não havia canções, só as
lembranças pululavam na face e no íntimo de cada um. Agora sabíamos que
tínhamos conhecido um grande escoteiro, um grande chefe, mas só demos o valor
quando ele se foi. Não houve promessa, não houve medalhas, não houve
certificados de gratidão. Nem um simples agradecimento verbal. Só mesmo a
lembrança ficou. Saudosa, dolorida e que nunca mais vai ser esquecida em nosso
grupo escoteiro.
Fiquei pensando que nem sempre a escrita, a formação intelectual
e docente deve ser avaliada para a escolha de um líder. Como diz o Grande
Arquiteto do Universo, a muitas moradas na casa de meu pai. Ele se sentia satisfeito com o que fazia e ali
era o seu lugar. Confirmar tais indivíduos que se multiplicam por todas as
plagas, dando seus valores merecidos, faz parte de nossa aceitação em chamá-los
de escotistas, de chefes. Voltei para casa meditando. Era um Escotista
cumpridor de seus deveres. Não almejava nada. Fazia seu trabalho sem
recompensas. Era o lixeiro, o carregador, o apanhador de sonhos. Vi então que a
Lei do Escoteiro também é a lei do Chefe Escoteiro.
Nunca mais voltei lá. Não porque não quis, não houve
oportunidade. Mas o chefe Remo ficou marcado para sempre em minha memória.
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