Lendas Escoteiras.
O meu último toque de silêncio!
Tony Blanco
chorava copiosamente a minha frente ali naquele bar em uma travessa da Avenida
São João. Não me lembrava do nome da travessa, mas ficava próximo ao número 300.
– O Senhor se lembra Chefe Osvaldo do Pintassilgo? – Claro que me lembrava. Ele
e Tony Blanco eram amigos inseparáveis. – Pois é nunca tive um amigo fiel como
ele. Amigo mesmo. De todas as horas. Éramos de Patrulha diferente da sua. Lembro
que o Senhor era da patrulha Lobo e nós da Touro. Mas fizemos juntos muitos
acampamentos. Lembra-se daquela jornada na Ilha do Cajuru? Foi demais não? – Eu
lembrava. Minha mente passeava pelo passado. – Pois é Chefe Osvaldo, desculpe
chamá-lo assim. Não sou mais Escoteiro. Eu hoje não sou nada. Um molambo
largado na vida. Não tenho família, amigos, nada e nem ninguém que se preocupe
por mim.
A vida sempre
a nos reservar surpresas. Um filho me pediu para ir até a Santa Efigênia
comprar uns itens de computador para ele. Quando desci do ônibus na São João senti
que ia passar mal. Corri até um bar em uma travessa da avenida e pedi um copo
de água mineral. O remédio estava comigo. Ajuda mas não muito. Depois tinha que
sentar e respirar por alguns minutos. Foi então que o vi. Nada mais nada menos
que Tony Blanco. Maltrapilho, sujo, cara lisa, mantinha o mesmo corpo forte do
passado quando puseram nele o apelido de Maciste. Mas era uma sombra do
passado. A última vez que o vi foi em 1978, em um Seminário Escoteiro em Juiz
de Fora. Nunca mais nos encontramos. – Pois é Chefe faz tempo não? Mas ele não
sorria. Tony me conte o que aconteceu ao Pintassilgo?
Morreu Chefe.
Morreu. Uma morte horrorosa. Ficamos juntos até 1980. Morávamos juntos, mas
sempre mantendo a fleuma de amigos somente. Ele nunca me deixou. O Senhor sabe
disto. Por causa dele não casei com a Das Dores. Gostava dela, mas mesmo
aconselhando a ele arrumar uma namorada ele ria e dizia – Não quero. Se arrumar
vou casar. Se casar você deixa de ser meu amigo. Olhe Chefe muitos
interpretaram mal esta amizade. Acho que não entendem que para ser amigos de
verdade não precisamos de subterfúgios. Basta gostar. Gostar de maneira
simples, sem desejos, sem aspirações que não seja estar junto de quem gosta.
Das Dores riu de mim quando disse isso a ela. Interpretou mal. Vim para São
Paulo. Pintassilgo veio também. Comecei a trabalhar em uma construtora como
Mestre de Obras. Ele também. Alugamos uma pequena casa no Bairro Cajuru.
Pequena mas dava para nós.
- Tony, você ainda
toca o Clarim? Perguntei. Lembra quando eu e você nos exibíamos na “banda” do
Grupo Escoteiro mostrando nossas qualidades? E quando formos servir no exército?
Ficaram em dúvida entre eu e você ser o corneteiro da unidade. Ele me olhou e
mesmo com os olhos marejados de lágrimas deu um pequeno sorriso e disse – O
joguei fora. Tinha de jogar – Porque meu amigo? – Pintassilgo um dia
desapareceu. Tentei encontrá-lo por toda a cidade. Perdi o emprego por que não
ia trabalhar. Passou-se dois meses. Que falta Chefe eu sentia dele Chefe. Nada
ajudava. Não conseguia emprego fixo. Fui para as ruas. Morador de rua. Aqui e
ali uns trocados. A vida ali é dura, mas hoje aprendi. Sei me virar.
- Largou
mesmo o escotismo? – Larguei. Cheguei a ajudar em um grupo próximo a minha
casa. Mas senti dificuldade. Aqui se fazia tudo diferente. Gostava dos jovens,
mas implicaram com Pintassilgo. Ele sempre junto. Falaram coisas que não
gostei. Não entendiam o valor de uma amizade. – Olhe, eu fui a várias delegacias,
lá zombavam de mim pelo que eu era. Fui a hospitais, Rodei em prontos socorros,
fui ao IML e nada. Não dormia direito. Ainda tinha meu clarim guardado na caixa
como quando comprei. Havia anos que não tocava. Um dia com minha carrocinha na
descida da Avenida Angélica, avistei o Nonô, o Senhor deve lembrar-se dele. Era
Monitor da Pica Pau e sumiu também com sua família. Eu não sabia quem era ele. Não
tinha cabelos e seu nariz fino e comprido não dava para esquecer. – Ele me viu
e me reconheceu. Convidou-me para tomar uma cerveja e até pagou para mim um
almoço. Fazia dois dias que não comia.
- Você
soube o que aconteceu ao Pintassilgo? Ele disse. – Não! Conte-me. Faz cinco
anos que estou procurando. – Morreu torturado por traficantes na Favela da
Caixa D’água. – Chorei na hora. – Por quê? Porque meu Deus? – o confundiram com
o Maneco Tiro Certo. Eram quadrilhas rivais. Você não sabe, mas sou
investigador da 17º Delegacia. Fui ver uma denuncia anônima. Cortaram sua
cabeça, seus braços e pernas. Depois atearam fogo. – Ficamos em silêncio por
muito tempo. Eu não sabia o que dizer. – Depois perguntei – E onde foi
enterrado? Acho que no Cemitério de Vila Alpina. – E você meu amigo, ainda
nesta vida de morador de rua? – Conversamos mais algumas horas e ele se foi. Deixou-me
um cartão. – Se precisar telefone disse. Lembrei-me do Chefe Tonho que dizia –
Um Escoteiro é sempre irmão. Nunca deixa um dos seus na mão.
- À
tarde do dia seguinte fui até o cemitério de Vila Alpina. Tomei um banho no
Albergue que fiquei hospedado. Coloquei meu uniforme Escoteiro. Estava
guardado. Nunca me desfiz dele. Todos os mendigos de lá assustaram. Peguei um
ônibus até Vila Alpina. A mocinha que me atendeu não tirava os olhos de mim. Disse-me
onde ele estava enterrado. Joviel Peixoto. Eu sabia seu nome. Não havia
sepultura. Um buraco. Mais nada. Pedi uma pá emprestada. Fiz uma tampa de
terra. Tirei de outros túmulos um pouco de capim. Claro algumas flores também.
Achei duas taboas. Fiz uma cruz. À mocinha me olhava de longe. Já estava
escurecendo. Tirei da minha bolsa meu clarim. Meus olhos se encheram de
lágrimas. A boca seca. Não conseguia tocar.
-
Chefe Osvaldo, eu o vi em pé na sepultura. Sorria, não disse nada, estava de
uniforme Escoteiro. Brilhava na escuridão. Me fez a saudação Escoteira. Desta
vez toquei meu clarim com garra. E como toquei. O mais triste toque de silencio
que toquei em minha vida. – Sabe Chefe Osvaldo, eu vi, eu vi mesmo muitos que
ali morreram ficarem de pé em suas sepulturas calados. Eu vi relâmpagos no céu.
Eu vi uma estrela brilhante em cima de nós.
- Enquanto
ele me contava o acontecido eu me lembrei de um pequeno poema que tinha lido –
“Os clarins tocam pelos heróis, que morrem pela ignorância humana. O Silêncio é
das vozes que se calam diante das injustiças e barbárie que são cometidas
contra quem não pode por si, se defenderem”. Eu conhecia o toque. O toquei milhares de
vezes. É um toque triste. Fiquei ali com Tony. Eu também chorava. O bar vazio.
Dei a ele meu cartão. Escureceu. Não podia mais comprar o que meus filhos
pediram. Despedi-me dele oferecendo ajuda. – Obrigado Chefe Osvaldo. Obrigado.
Já tenho o suficiente para viver minha vida de morador de rua. É minha sina.
Aqui estou vivendo e aqui morrerei. Saiu me dando um aperto de mão e um Sempre Alerta.
- Falar
mais o que?
O último toque...
O último toque para o silenciar da noite
Ainda vejo os cílios na sombra...
Da lagrima no chão!
Ainda ouço, o silencio da mente...
Por tantas vezes errante pela emoção.
Ainda ouço, o ultimo toque para o silenciar da
noite...
Assim, prendendo a respiração.
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