Uma linda historia escoteira

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Era uma vez...

domingo, 17 de março de 2013

Gloria feita de sangue. A última Luta de Manuelito.



Atenção! Se você tem coração fraco, não leia esta história. Pode se emocionar demais.

As mais lindas histórias escoteiras.
Gloria feita de sangue. A última Luta de Manuelito.

                      Não dá para esquecer, foi no último verão de sessenta e um. As chuvas de Santo Inácio que todos esperavam não aconteceram como o previsto e ali, a beira da Lagoa do Lagarto, o fogo de conselho já havia terminado. A escoteirada já se recolhera. Aqui e ali a fogueira ainda se esforçava para mandar aos céus uma ou outra fagulha brilhante. Todos já haviam se recolhido e eu resolvi ficar. Panchito me fazia companhia. Bom amigo. Conhecemos-nos em Aguascalientes no sul do México em cinquenta e oito. Ele já morava no Brasil há vinte anos, mas seus pais residiam nesta cidade e ele a cada cinco anos voltava para fazer uma visita. O motivo porque estava em Aguascalientes fica para outra história. Deitamos a beira da lagoa sobre uma lona leve e admirávamos o vai e vem dos cometas e satélites que giravam em torno da terra a grandes velocidades. Já sentia o orvalho da madrugada se aproximando quando vi que Panchito chorava baixinho. – O que foi? Perguntei. Olhe Chefe, sempre quando me lembro de Manuelito meu coração bate forte.

                      Deixei que ele se acalmasse e foi assim que ele me contou toda a história de Manuelito. – Era um jovem de seus doze anos. Magro, raquítico, tamanho normal para sua idade. Cabelos loiros, olhos negros fundos, nariz afilado estava na tropa havia oito meses. Falava pouco e ficamos amigos. Assim como ele eu também era da Corvo. O Gentil era o Monitor. Ótima pessoa. Tudo começou quando Gentil comentou que na Corte de Honra foi discutido a data do próximo Grande Desafio. Nos últimos três anos sempre foram realizados. Nunca fiquei sabendo como tudo começou. Toda a tropa só comentava a vinda de mais três tropas de cidades vizinhas. Ia ser um espetáculo a parte as disputas naquele ano. Seriam realizadas no Estádio do Azulão Futebol clube, pois no ano anterior houve grande aglomeração de pessoas no campinho de pelada em frente à sede prejudicando em parte a visão de todos. – Não estava entendendo, mas deixei que Panchito continuasse sua narrativa. – Chefe, precisava ver o olhar de Manuelito quando disse que o primeiro lugar ganharia uma Faca Suíça e um Cantil do Exército. Nunca o vi sorrir daquele jeito. – Fiquei com pena. Manuelito não tinha a mínima condição de chegar as finais.

                  - Sabe Chefe quando conto esta história para alguém, dão risadas. – Uma simples briga de galo? – Mas isto se faz em todas as tropas a século! Mas Chefe, conosco era diferente. Havia uma técnica própria. Cheguei a ver em um ano dois contendores ficarem uma hora e meia lutando. Vi tantas lutas que eu mesmo desisti, pois nunca cheguei além do nono lugar. Manuelito não. Perguntou-me a data, como ia ser a seleção e se todos podiam se inscrever. – Disse a ele tudo que perguntou e mais alem, disse também que ele nunca tinha lutado. Pediu-me que mostrasse como se luta. Ficamos uma hora lutando. Ele mal se matinha em pé. Caia sempre. Desistir? Jamais. Manuelito sonhava com a Faca Suíça. Só falava nela. Queria ter uma e sabia que nunca poderia comprar. Uma semana antes da seleção, que seria feita com todas as patrulhas por duplas Manuelito disse que estava preparado.

                     - Chefe, Manuelito estudou tudo. Desenhou. Treinou horas e horas em sua casa a ficar parado ou pulando em um só pé. Suas mãos as costas pareciam aço. Não se soltavam. Sabia fazer com perfeição uma Asa Direita ou esquerda (cotovelos em forma de V). O Joelho do Papagaio aprendeu rápido. Mas era magro, respirava com dificuldade e mesmo assim se mostrou um valente. O primeiro, segundo e terceiro lugar já tinham dono. Neco, Lastimer e Juventino eram os melhores. O quarto lugar foi disputado com galhardia. Manuelito a muito custo conseguiu o quarto lugar. O Chefe Wantuil não acreditava no que via. Ele ficou preocupado. O corpo de Manuelito não foi feito para aquele tipo de luta. Tentou falar com seus pais que sempre arredios não iam à sede. Desistiu e deixou que Manuelito participasse. Arrependeu-se muito depois. O grande dia chegou. Centenas de pessoas já estavam alojadas nas arquibancadas. Poderia jurar que ali no inicio do Grande Desafio tinha mais de três mil pessoas. Os parentes e vizinhos das outras três cidades compareceram em peso.

                       Chico Nonato o comissário distrital abriu a competição. Chamou um a um os dezesseis finalistas gritando alto seus nomes e conquistas escoteiras. Quatro por tropa. Formaram em linha. Todos parrudos, fortões e Manuelito se destacava pela sua magreza. Nas arquibancadas gritavam – Tira o magrelo! Tira o minhoca! Ele de cabeça baixa não se incomodava. Sonhava com a Faca Suíça. Ele sabia que não poderia ficar lutando por muito tempo. Sabia o que tinha internamente e se ele brotasse em seu estomago iria ser levado à boca e aí não ia ser fácil. Seria desqualificado na hora. Isto não poderia acontecer! – Não foi difícil para Manuelito chegar as quartas de finais. Aprendeu e treinou dias e dias a rodopiar com seu Joelho do Papagaio e deixava que os outros pulassem sobre ele. A Joelhada era fatal. Ninguém acreditava no que via. Ficaram quatro competidores finais. Ele ia lutar com um dos campeões do passado. Matusalém era famoso. Quando ele olhou para Manuelito sorriu. – Este está no papo. - Não quer desistir? Perguntou. Uma hora de luta. Sempre Manuelito se esquivando. Manuelito o sentiu no estomago. Deus! Deus meu! Não deixe que suba! Ajude-me. Eu preciso desta Faca Suíça! E meu sonho meu Deus!

                       Ganhou para espanto de todos. Sentiu que suas pernas e suas entranhas não aguentariam a final. Botelho Papa Léguas era o finalista da Tropa de Jaguatiruna. As apostas perdiam a graça. Ninguém apostava em Manuelito. Eram trinta por um e à medida que ele vencia caia. Agora estava em dez por um. Um silêncio enorme e a luta de morte começou. Ambos se estudando. Botelho Papas Léguas não subestimou Manuelito. Se ele chegou até ali é porque era bom. Viu uma brecha, viu os olhos de Manuelito piscando e se fechando. Deu oito saldo longos e pegou Manuelito de jeito com a asa direita. Manuelito conseguiu se esquivar, mas a esquerda roçou com força seu olho direito. Uma dor incrível! Manuelito quase perdeu o equilíbrio. Não iria aguentar outra. O sangue agora estava enchendo sua boca. A hemorragia que seu pai sempre falava estava chegando. Sabia que uma ou duas veias tinham partido. Se não parasse iria morrer.

                        Não podia, não podia parar! Meu Deus me ajude! Dê-me mais uns minutos, daria minha vida para ter esta Faca Escoteira!  Botelho Papa Léguas não sentiu piedade. Ele também queria ser o campeão do torneio. Nunca tinha ganhado. Entrara para o escotismo pelo premio e claro pela fama. Afinal perder para aquele escoteirinho de nada? Raquítico, pequeno, e agora chorando? Sim Manuelito tinha os olhos cheios d’água. A asa esquerda o pegou de jeito entre os olhos. O sangue quente na boca. Firmou os lábios. Tentou engolir. Não deu. Não iria soltar o sangue na grama verde. Seria desqualificado! Pulou uma duas vezes. Fez um sinal para Botelho Papa Léguas como a dizer – Venha moleza! Botelho Papa Léguas não se fez de rogado. Pulando com uma rapidez incrível preparo sua asa direita para liquidar logo esta contenda. Infelizmente ele sabia que Manuelito ia se estatelar no chão. Mas não podia ter pena nem dó e nem piedade. Como dizia sua Avó, jogo é jogado e lambari é pescado.

                        Manuelito viu num relance o que Botelho Papa Léguas ia fazer. Sabia que não podia desviar muito. Se pulasse o sangue ia jorrar de sua boca. Ele sentia mais e mais a pressão do sangue subindo goela acima. Uma dor incrível no cérebro, o corpo tremendo. Esperou. Faca Suíça! Não vou perder você. Deus vai me dar forças! Manuelito esperou até que Botelho Papa Léguas se virasse e novamente usasse a lateral esquerda para lhe bater a toda no seu ombro com a Asa Direita. Quando sentiu o hálito quente da respiração de Botelho Papa Léguas, Manuelito abaixou e levantou de uma vez. Pegou Botelho Papa Léguas desprevenido. Ninguém esperava que ele usasse este truque. Velho conhecido de todos. O vai e vem do corpo subindo e descendo. Botelho Papa Léguas perdeu o equilíbrio. Nas arquibancadas um murmúrio alto. Todos ficaram em pé. Não acreditavam no que viam. Todos só viram Botelho Papa Léguas se esparramar pelo chão. Os apostadores não acreditavam na cena estática que se apresentava. Eram dez por um. Impossível diziam.

                  Manuelito se equilibrou ainda na perna direita por alguns segundos. Suas mãos se soltaram e foram forçadas no ventre como a querer interromper o sangue que agora saia aos borbotões dos seus lábios. Não dava para segurar mais. Rodopiou em si mesmo e caiu esparramado no chão gemendo alto e querendo sorrir. Afinal ele ganhou a luta. A Faca Suíça era sua! O sangue vermelho se misturou ao verde da grama. Um colorido sem graça. Vários chefes acorreram. Viram Manuelito com enorme hemorragia interna. Desmaiado. A morte parecia que ia chegar. Um carro apareceu no campo. Ele foi transportado para o hospital da cidade. Uma semana depois souberam que ainda estava na UTI. Perdera muito sangue. Precisava ir para a Capital. Seus pais choravam, mas não condenaram o filho. Se ele morrer foi porque sabia que seu sonho seria maior que a morte!

                   Seis meses depois em uma tarde de agosto bolorenta, um sol preguiçoso no céu Manuelito apareceu na sede em uma cadeira de rodas uniformizado. A tropa parou espantada. Ele sorria, um sorriso tênue como se o sol ali como ele estivesse esperando para levá-lo. Seu pai estava junto. Disse que ele insistiu em vir. Queria receber a Faca Suíça dos seus sonhos. O Chefe Wantuil foi até sua casa e voltou com ela. Todo o grupo se formou. Honra ao mérito ao escoteirinho herói. Como bons escoteiros todos prestaram continência em posição de sentido a Manuelito. Pediu que eu entregasse a ele a faca e colocasse no seu cinto do lado direito. Uma honra para mim Chefe! Um Anrê foi dado. Uma explosão de alegria em todos os presentes. Um exemplo para ser lembrado por toda a vida.

                  Manuelito ainda viveu mais um ano. Morreu com treze anos. Só então ficamos sabendo que ele era tuberculoso. Sua família também. Uma época em que a medicina não tinha cura nestes casos.  Seu pai sabia, mas como tantos outros escondiam, pois ele tinha exemplos de pessoas portadoras de tuberculose que foram defenestrados pela sociedade. Eram párias abandonados à própria sorte.  Uma semana antes de morrer, Manuelito me pediu que quando fosse para o Campo Santo, que a Faca Suíça estivesse no cinto, pois queria estar uniformizado. Chefe, meu Deus! Quanta tristeza. Milhares de gente ali em volta da sua ultima morada chorando. Eu Chefe, era o que mais chorava. Não sabia como enfrentar tudo daí para frente. Ate hoje ainda vou lá visitá-lo. Falo com ele sempre. Sei que ele não está ali, mas isto alivia minha dor e me conforta.

                 Panchito se levantou. Chorava copiosamente. Desculpe Chefe. Desculpe. Melhor é ir para minha barraca. E lá foi ele me deixando ali a beira daquela lagoa cinzenta, ao lado de uma fogueira apagada, só cinzas e um orvalho caindo e molhando minhas faces. Vi que as minhas lágrimas também se misturavam ao doce orvalho do amanhecer. Uma bruma cinzenta pairava sobre a lagoa. Pensei em ir dormir e ir para minha barraca. Não fui. Sentei a moda índia e fiquei ali até o amanhecer de olhar fixo no horizonte, acima da Lagoa do Lagarto. Não houve sol aquele dia. Uma chuva leve e intermitente começou a cair. Um peixinho pulou sobre as águas cinzentas da lagoa. Minha mente voltava ao passado. Manuelito, um sonho realizado. Uma morte honrosa. Um menino que foi homem para aceitar o seu maior desafio. Uma luta sem gloria. Ou melhor, Gloria feita de Sangue! 

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