Lendas escoteiras.
Joviano Perna Fina, os Touros, as Artimanhas e Engenhocas.
Quer saber? Nem sei como tudo começou. Para dizer a verdade acho que
valeu e outros não gostaram muito. Éramos quatro patrulhas, todos amigos e não
gostávamos muito de jogos ou atividades onde teria de haver um primeiro lugar. Claro
quando as quatro acampavam juntas não tinha como fugir. Uma vez vi os Morcegos
perderem só para ver a alegria dos Javalis. Bem sei que não compreendem, mas
vejam bem, é triste você ganhar e ver a tristeza nos olhos dos outros. Afinal
eles também se esforçaram. Claro isto poderia ser considerado como forma de
incentivo para que as outras patrulhas conseguissem melhorar. Foi bom eu acho.
Outros me disseram que poderíamos fazer em patrulhas sem ficar se gabando como
ficou Joviano Perna Fina. Quem sabe foi isto que a maioria não aceitou muito.
Foi em
um sábado pela manhã que a ideia surgiu. Claro foi ideia do Joviano Perna Fina,
mas todos adotaram. Ficamos horas discutindo em patrulhas quais Artimanhas e
Engenhocas seria de grande valia em um acampamento Escoteiro. Era regra que Fossas
com tampa fosse aberta com um só toque e um dia Tiquinho foi mais alem, a fossa
abria e com outro toque a terra era jogada por cima do lixo. Tanto a de
detritos como a de líquidos. Isto mesmo, Tiquinho meus amigos foi o maior
construtor de pioneirias que conheci. Ele era um “craque”. Não só criava e
fazia como tinha um caderno onde desenhava tudo e o melhor, dava medidas e
quantas madeiras iam gastar. No entanto Tiquinho era da Touro. Nossa Patrulha a
Maçarico fazia o trivial variado e mais nada. Mas não damos por vencido.
Planejamos a maior engenhoca que um acampamento pudesse ter. Afinal ficamos
cinco dias na casa do Taozinho para planejar.
O grande
dia chegou. Ninguém contava nada para ninguém. Segredo absoluto. Três dias
acampado na Garganta do Morcego. Lá era um local especial. Boa aguada,
cachoeiras, entre as duas montanhas enormes moitas de bambus gigantes (Bambusa
vulgaris vittata). Ideal para pioneiras de grande porte. O bambuzal lá era tão
antigo que muitos pés ultrapassavam os trinta metros de altura. Como sempre o
Chefe Jessé só iria no segundo dia. Trabalhava na Vale do Rio Doce e não tinha
folga. Sempre que ele não estava Romildo se investia no cargo de Guia. Naquela
época o Monitor mais antigo era o Guia de Tropa. Eu mesmo sonhava um dia ser
um. Seu bastão com o totem de Guia era enorme e sua ponteira de aço dava
inveja. Mas olhe, haja braço para carregar o bastão. Pesado, muito pesado. Bem
cedo na sexta com a cidade ainda dormindo lá íamos nós com nossa carrocinha
pela estrada do Girassol. Não fomos junto às outras patrulhas. Pelo programa
nos encontraríamos lá às dez e meia. Era coisa de quatro horas a pé.
Na fazenda do Senhor Girardo
demos uma parada. Sabíamos que Dona Filomena sua esposa sempre nos convidava
para comer um bolo ou biscoitos. Ele aproveitou para nos prevenir do Trio da
Morte. Um touro escapou da Larga do Sol e juntou com mais dois garrotes.
Atacavam tudo. Ele já tinha tentado com outros fazendeiros prender os bois, mas
ainda não tinha conseguido. Estávamos saindo quando chegaram mais duas
patrulhas. Resolvemos ir juntos. Os bois assustavam. Onze e meia chegamos. A
Coruja já estava lá. Mãos a obra. Romildo escolheu um pé de Azinheiro e lá
arvorou a bandeira. Cada Patrulha escolheu seu campo e ficamos bem longe uma
das outras. Até a tarde precisávamos fazer o trivial variado. Fogão suspenso,
fossas, mesa com bancos, intendência mateira e WC. Fácil. Nunca gastamos mais
que cinco horas para isto.
Fumanchú
já estava a postos com o almoço. Todo ele ração C. Levado individualmente em
bornais. Já à tarde por volta de três horas começamos nossa engenhoca. Trazer
água da cascata até o acampamento. Uma bica e um chuveiro deviam ser
levantados. Se possível no segundo dia faríamos também um elevador até um ponto
alto de alguma árvore para servir como torre de observação. Mãos a obra.
Baleiro da Coruja comentou conosco que iriam fazer uma ponte elevadiça que
seria movimentada com a força da água. Já sabíamos que os Javalis e os Morcegos
iriam construir um pequeno parque de diversões. Pretendiam fazer um Carrossel e
uma Roda Gigante. Todos movido à água. Pensei com meus botões se conseguissem
seriam uma verdadeira lavada nas demais patrulhas.
Foi uma
noite divertida. Fugindo as regras ninguém foi dormir cedo. Os lampiões a
querosene davam um brilho fantasmagórico em cada Patrulha que bravamente
estavam a campo para produzir o que idealizaram. Às duas da manhã se ouviu o
apito do Romildo. Hora de dormir. No segundo dia, café, inspeção (feita pelos
Monitores, pois o Chefe Jessé ainda não havia chegado) e de volta as
construções. Conseguimos as quatro da tarde tomar uma chuveirada fria atrás da
barraca de intendência. Valeu os dois cocos maduros que encontramos. Ótimo
chuveiro. Bem próximo à cozinha a água jorrava em uma bica formidável. O grito
da Patrulha Coruja mostrou que a Ponte Elevadiça funcionava. Faltavam ainda os
Javalis e os Morcegos. Fomos até lá. Meu Deus, o carrossel estava pronto. Lindo!
Sabia que Toquinho era bom nisto, mas ao ver o Carrossel fiquei abismado. Só
ele valia por tudo. Uma engrenagem de bambu, Cinco latas de vinte litros que se
enchiam automaticamente no remanso fazia o Carrossel movimentar.
Lá
pelas quatro da tarde do segundo dia o Chefe Jessé chegou na sua Philips de
guerra. À noite o Fogo de Conselho foi uma festa. Vários pularam o Fogo por
três vezes e receberam os seus nomes de guerra. O meu sempre foi Tupã. Eu
sempre me considerei um trovão dos céus. Waltinho recebeu sua Segunda Classe
renovando a promessa em frente ao Fogo de Conselho. Gostava disto. A chama
iluminando, o Monitor desfraldando a bandeira e o grito de guerra da tropa era
de tirar o folego. O melhor foi os Javalis. Levaram umas duzentas gramas de
pólvora, fizeram antes do anoitecer uma valeta com um bambu, nele colocaram um
rastilho de pólvora, marcaram o tempo até ela chegar na fogueira e o Marcondes
Monitor na sua melhor pose gritou – Acende Fogo eu te ordeno! Uma fumaça, um
pequeno estrondo e a pólvora fazia o inicio do crepitar das chamas.
No
domingo levantamos bem cedo. Acho que cinco da manhã. Era dia para tudo.
Inspeção, café e notas para ver a melhor das artimanhas e engenhocas feitas.
Toquinho sorria. Sabia que eles ganhariam fácil. Deu sete e meia e levamos o
maior susto. O danado do Touro e os dois garrotes fez do nosso acampamento um
inferno. Quebraram tudo. Tivemos que correr e subir em árvores para fugir da
fúria deles. Ficaram lá por mais de meia hora. Quando se foram não sobrou nada.
Tudo quebrado. Nossa água não existia mais, a ponte elevadiça foi levada pela
correnteza e a tristeza maior seria o parque de Diversões. Tudo no chão.
Maldito touro! O chamamos de Demônio Negro.
Chefe Jessé sempre aquele que nos dava ânimo. Chamou todo mundo e disse
– Vamos dar as notas conforme vocês viram. Cada um escreva a que dariam o
primeiro lugar, o segundo e terceiro. Não deu outra. Os Javalis e os Touros
levaram o primeiro lugar. Mereciam. Não tinha o que discutir. Ao voltarmos a
tarde o Senhor Girardo disse que teve de matar o Touro. Não tinha mais jeito.
Uma pena, um belo touro negro, ou melhor, o Belo Demônio Negro. Voltamos todos
juntos. Até o Chefe Jesse voltou a pé conosco. Carinhoso da Patrulha Touro
levou sua bicicleta. Uma pena valeu a atividade. Prometemos ir outra vez e
fazer de novo, mas sabe, perdeu a graça. Muitas ideias novas surgiram e as do
passado foram com o vento para algum lugar.
Histórias são historias. Cada um que viveu o escotismo tem a sua. E claro
quem conta um conto aumenta um ponto. Nada foi como dantes. As histórias ficam
assim mais deliciosas mais apetitosas para um dia serem contadas por aí. Quem
sabe em um belo Fogo de Conselho em uma mata enorme e escura?
¶O espirito da coruja mora neste acampamento!¶
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