Lendas escoteiras.
Nazareno, o menino Escoteiro
que falava com o céu.
(um conto baseado na doutrina
espírita).
Quanto tempo? Muito. Mais de vinte
e poucos anos. Uma vida. Não sei onde ele anda hoje e se ainda continua nos
caminhos que escolheu. Não digo que foi um santo que foi um pecador nada disto.
Poderia dizer que nasceu em uma família errada, na cidade errada. Nazareno nunca foi um crédulo, um homem de
Deus. Na época ele não teve escolha. Como Escoteiro sempre foi considerado um
simples menino sem muitos conhecimentos religiosos afora os que lhe foram
colocados como o correto como coroinha da Paróquia São Geraldo. Seus pais até
imaginaram que ele poderia ser um padre, um bispo um cardeal. Sonhos de muitos
pais em cidades do interior. Não porque fosse um prodígio em religião ou
milagreiro, nada disto. Eu pessoalmente na época, com parcos conhecimentos
espíritas achava que ele estava em contradição com as leis da natureza. Claro
que tinha excepcional inteligência para sua idade e em alguns casos poderia
dizer mesmo que ou fazia milagres ou tinha parte com o demônio. – Deus me
livre!
Nazareno procurava sempre
esconder suas possibilidades de falar com os mortos. Ninguém sabia. Dizem hoje
que a mediunidade faz parte da natureza. Que todos nós sem perceber somos médiuns,
uns mais outros menos. Não vou entrar no mérito da questão. Não estou aqui para
escrever sobre uma crença, uma Doutrina, uma ideologia ou uma filosofia como
querem alguns definir o espiritismo. Prefiro ficar com Mateus, em 15, 14 que
dizia: – “Deixai-os; cegos são os condutores de cegos. E se um cego guia a
outro cego, ambos vão cair no abismo”. Quem sabe é melhor ficar com Nathalia
Wigg que disse – “A maior mediunidade que um homem pode desenvolver é a
capacidade de amar”. Quando era lobinho sempre o achei taciturno, reservado e
retraído. Brincava, cantava, mas não parecia estar ali junto com seus amigos de
matilha. Quando passou para Escoteiro o encontrei uma vez depois da reunião
chorando. Seus olhos cheios de lagrimas. Seu corpo tremia. Sempre assim calado,
sem dizer nada. Perguntei o que havia e ele me respondeu melancólico que eu não
iria entender. Ninguém o entendia. Isto aconteceu várias vezes. Nunca comentei
o caso na Corte de Honra.
Cidade pequena, praticamente
católica como ajudá-lo? Quantas vezes ao sair da barraca pela manhã, com o sol
já despontando no horizonte, eu o avistava sentado em um lugar qualquer,
olhando para o céu? Um dia me disse – Monitor sabe de uma coisa? Tem alguém me
dizendo que devemos esperar que se o amor se propagasse no mundo com mais força
que a violência a violência desaparecerá, a maneira da treva quando a luz se
lhe sobrepõe. Eu tinha treze anos, não entendia nada do que dizia. O dia
amanhecia e lá estava a Patrulha nos seus afazeres. Nazareno corria com os
outros nas atividades, mas quase não sorria. Só uma vez o vi sorrindo quando
alguém brincou no Fogo de Conselho com os novatos com a velha brincadeira do
Serafim. Você conhece o Serafim? Não? Aquele que fica assim? Ele ria. Não
aquela gargalhada de quem conhece a brincadeira. Eu mesmo ate hoje dou boas
risadas.
Acredito que tudo piorou quando
na missa de um domingo qualquer, a tropa estava presente e ele sem ninguém
perceber foi ate onde estava o padre e em alto e bom som disse para todos os
presentes: – “Somos companheiros otimistas no campo da fraternidade”. Se Jesus
espera no homem, com que direito deveríamos desesperar? Aguardemos o futuro
triunfante, no caminho da luz. A terra é uma embarcação cósmica de vastas
proporções e não podemos olvidar que o Senhor permanece vigilante no leme! –
Todos os presentes na igreja ficaram estupefatos. Ninguém entendeu nada. Pudera
entender o que? Um menino Escoteiro com chapéu na ombreira, olhando para o céu
e de mãos postas dizer aquelas palavras? Era santo? Ou estava tomado pelo
demônio que fingia para todos ali presentes? O padre ficou possesso.
Na escola sua professora Dona
Neide, uma matrona dos seus quarenta anos sem filhos, magra, parecendo a Olivia
Palito esposa do Popeye o pegou varias vezes de olhos fechados, escrevendo sem
parar no seu único caderno que era para fazer a lição de casa. O pegou pela
orelha e o arrastou ate o diretor. Era difícil entender o que estava escrito vários
rabiscos que precisariam ordenar para entender. E depois? Como explicar aquelas
palavras? – “Quando cada um transforma-se em livro atuante e ao vivo as lições
para quantos nos observam o exemplo, as fronteiras da interpretação religiosa
cederão lugar a nova era da fraternidade e paz, que estamos esperando”. Não foi
uma só vez. Foram várias. Ninguém para explicar e ajudar. As brigas homéricas
do padre versus professora versos pais versos chefes eram constantes. Cada um
querendo que o outro resolvesse.
Ao fazer quatorze anos já com
sua Segunda Classe, Nazareno desistiu de sua Primeira Classe. Pela primeira vez
pensou em abandonar o Grupo Escoteiro. Ele sabia que era o único lugar que
ninguém perguntava e se preocupava com sua maneira de ser. O aceitavam como
era. Mas eu, como Monitor de sua Patrulha ficava de olhos nele. Tinha medo que
ele fechasse os olhos e desaparece em alguma mata ou bosque e pudesse acontecer
o pior. Mal sabia eu que ele era assistido por milhares de espíritos protetores
que iriam sempre lhe mostrar o caminho do bem. Um dia sua mãe procurou o grupo
e disse para o Chefe umas verdades. Este me chamou e ela sem papas na língua
disse em alto e bom som que nós não nos preocupávamos. Que o deixávamos fazer
suas ilusões mentirosas e até mesmo falar com Deus. Alguém soprou no ouvido dela
e do padre que era mediunidade. A resposta dela já pronta dizia que não era
mediunidade coisa nenhuma, era coisa do demônio ou dos escoteiros que o levavam
a acreditar em tudo.
Mal sabíamos nós que o fenômeno
mediúnico já estava fazendo parte dele. Mesmo sendo uma criança a partir do
momento que se deixa dominar a influência espiritual está presente. Ainda bem
que ele tinha amigos que o protegiam na espiritualidade. Sabemos que quando
isto acontece pode um espírito qualquer aproveitar a circunstância e querendo
fazer coisas erradas, e claro por satisfação do obsessor que nada mais é alguém
de um passado seu. Nunca vi em Nazareno ações destemperadas. Se fosse hoje
poderia dizer que ele estava tendo comunicações mediúnicas na acepção da palavra.
Mesmo que todos queriam interromper esse fenômeno não iriam conseguir. E tudo
seria tão simples com a oração, a pacificação, o desligamento do mal e seria
fácil fazê-lo desligar daquela ação.
O pior aconteceu. A família de
Nazareno começou a ser estigmatizada. Todos passaram a evitá-los. O dia ele
chegou e me procurou chorando – Monitor tenho de sair. Meus pais vão mudar
daqui. Nem sei qual cidade vamos e eles me pediram e até ajoelharam em meus pés
para procurasse ser normal lá. Não entendi, pois me acho normal. Nunca disse
para você, mas vejo tanta gente quando ando, quando durmo, e ate aqui no grupo
eles estão. Não fazem mal a ninguém, pois me disseram que onde houver um
ambiente saudável, cristão, onde Deus está presente eles não faram nenhum mal.
Sabe Monitor, aqui encontrei uma paz que não encontrava na escola e nem em
minha casa. A Lei Escoteira e minha promessa nunca será esquecida.
Eles partiram duas semanas
depois. O tempo passou. Esqueci-me por completo de Nazareno. Há vinte anos
atrás sem perceber alguém me chamou quando descia a pé a Avenida Angélica.
Olhei para trás e reconheci Nazareno. Vestia simples, uma camisa verde
desbotada e uma calça jeans velha. Calçava um sandália de couro. Convidou-me
para um café. Contou-me sua vida depois da mudança. Seus pais morreram logo.
Disseram que foi de desgosto. Eu vim para São Paulo aqui me casei e aqui criei
meus filhos. São três. Um deles é formado em engenharia. Os demais seguiram
outro rumo, mas são pessoas honestas. Eu e Linda minha mulher descobrimos um
Centro Espírita próximo a minha casa lá no Bairro Santa Amélia. Gostei quando
me aproximei deles. Gente simples. Não são um órgão centralizador. Apenas
alguns princípios básicos que sustentam a Doutrina. Participo ativamente quando
não estou trabalhando. Sou pedreiro e isto me dá o suficiente para minha
família. Há algum tempo estou escrevendo. Ou melhor, psicografando. Ainda não
tenho nenhum livro. A maioria do que escrevo são mensagens para pais saudosos,
e graças a Deus eu tenho ajuda de amigos espirituais que fiz nesta jornada
desde que estou lá.
Fiquei ali com Nazareno por horas.
Para dizer a verdade ele tinha uma voz que me encantava. Falava pausadamente
sem ostentação. Seus olhos brilhavam quando falava da sua nova vida. Insistiu
para que um dia fosse a sua casa. Sua esposa já sabia de mim, pois ele sempre
contou sobre seus tempos de escotismo. Hoje não participa. Ainda se sente um
Escoteiro. Mas suas horas de folga, seu tempo livre é dedicado a ajudar os que
procuram no centro. Sabe Monitor, eu sou muito feliz em poder ajudar no
tratamento, orientação dos problemas materiais e espirituais dos que procuram minha
ajuda no Centro Espírita. – Monitor, ele disse, eu gosto de recepcionar os que
nos procuram. Eu sei que o primeiro contato é a primeira impressão que
cativarei para ajudá-lo em tudo que for possível.
Não fui a casa dele. Talvez pela
falta de tempo. Devia ter ido. Afinal sou um Kardecista de mão cheia. Não nos
encontramos mais. Ainda tenho seu telefone. Todos os dias penso e ligar e não
ligo. Quem sabe já escreveu um livro? Sinceramente? Gostaria de ler. Vou
terminar por aqui. Desculpem os que ainda não professam a Doutrina Espírita.
Não escrevi um conto com a intenção de catequizar ninguém. Respeitar a escolha
individual faz parte da minha maneira de ser. Escrevi mais por recordar alguém
que um dia me deu a luz para o espiritismo que conheço hoje. Como diz o nosso
querido Chico Xavier: - “Acreditamos que o Criador nos fez
rico a todos, sem exceção, porque a riqueza autêntica, a nosso ver, procede do trabalho e todos nós de uma
forma ou de outra, podemos trabalhar e servir”.
Obs. Muitos dos escritos aqui foram anotados por Chico Xavier em suas
centenas de livros.
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