Lendas escoteiras.
Saudades do meu Lampião Vermelho encantado.
Minha Avó olhava para mim e dizia – O lampião cum corosene só serve pra infeitá os comudu da casa. Era assim que ela falava. Eu gostava de minha avó. Mesmo com seu palavreado de mulher simples da roça, ela era a grande mãe que não conheci. Criou-me desde que nasci em uma casinha de barro e que ela sempre mantinha limpa e asseada. Minha mãe morreu de parto e ela sozinha me criou. Plantava roça para sobrevivermos, não deixava que eu andasse de qualquer maneira e fazia questão que fosse à escola mesma que tivesse de andar seis quilômetros todos os dias.
Um dia ela remexendo em um baú, tirou de lá um Lampião Vermelho a querosene
praticamente novo. Lembro que ela disse que meu tio que morava na capital o
trouxe para ela a muitos e muitos anos atrás. Sabe o que ele me disse? Ela
dizia - Disse que este lampião é sentimental. Fala, chora e ri. Claro não
acreditei. Olhei-o. Estava novinho. Era lindo! Não queria testar. Faria isso só
junto aos meus amigos da patrulha Raposa em um belo acampamento de verão.
Deixei-o guardado em meu quarto até o dia que ele seria entregue ao intendente
da Patrulha Raposa. Esqueci-me de dizer, participava de um Grupo Escoteiro na
cidade. Todo sábado eu ia com meu uniforme, marchando a pé pela estrada sempre
cantando uma canção escoteira.
Tinha um pequeno prego na parede em meu quarto. Pela
alça o coloquei lá. Já ia saindo quando ouvi um barulho que parecia um toque na
parede. Voltei-me e vi o Lampião Vermelho. Balançava e fazia sinais e dizia: -
Gostei de você. Vamos viver juntos por longos anos. Você nunca vai se
arrepender de me ter como amigo. Não era possível pensei. Lampião Vermelho não
fala. Mas como soube de um chapéu de três bicos de um "Velho"
"Chefe" Escoteiro e um bastão totem da Patrulha Pantera que falavam,
porque não acreditar no lampião vermelho?
No sábado seguinte o levei até a sede. Foi apresentado a Patrulha e ninguém
ligou para ele. Não davam importância. Vi que ele olhou para mim com os olhos
tristes. Achou que seria bem recebido. E o pior aconteceu. Quando o doei para a
Patrulha ele chorou. Claro não vi chorar, mas fui embora tristonho. Soube que
tinha chorado na reunião seguinte. Deu-me saudades e fui até ao almoxarifado.
Ele estava caído no chão, a querosene não sei como jazia em uma poça ao lado
dele. De novo em sinais me disse da sua tristeza. – Não me deixe aqui. Não
tenho amigos, tentei falar com a barraca e as panelas, mas elas nem ligaram para
mim. O único que me disse alguma coisa foi aquele feioso e metido lampião a
gás. Ele se acha o tal.
Dei uma desculpa ao Monitor e o levei
de volta. Um belo sorriso eu vi no vidro que ele portava. Pendurei-o no velho
prego do meu quarto. Vi que ele deu uma sonora gargalhada. De novo em casa,
disse. Não sei por que comecei a gostar do Lampião Vermelho. Quando chegava da
escola ou dos folguedos na rua, sempre ia ao meu quarto e dar um sorriso para
ele. Ele sempre me dizia que quando fosse ao acampamento iria mostrar o quanto
podia me ajudar. Nem prestei atenção a isto. Mas o dia do acampamento chegou.
Minha mochila eu já tinha arrumado e ele esperando que eu o colocasse também na
mochila. Esqueci-me dele.
Vesti meu uniforme e fui até a cozinha pegar minha ração de campo. Cada um de
nos levava uma pequena quantidade que no acampamento seria juntado às demais.
Era assim que fazíamos, pois gastar com taxas era difícil. Minha Avó já sabia
como preparar. Linda minha Avó. Quando coloquei a mochila e dei até logo a
minha Avó ouvi um barulho no quarto. Lá estava ele a balançar na parede e a
dizer – Não vai me levar? Não foi para isto que fui feito? Sorri sem jeito e o
coloquei na alça da mochila junto com a meia lona da barraca. Coube direitinho.
Ele deu uma boa risada e disse – Vamos meu amo, vamos para um lindo acampamento
e eu estarei ao seu lado. Em frente marche!
Os
seis quilômetros foi feito com sempre cantando. Achei que ele cantava também,
mas como? Lampião na fala e não canta. Mas o meu falava e cantava. Na sede
ninguém o notou. Colocaram-no na carrocinha todo material de campo e por cima
amarraram o lampião a gás que sorria todo dengoso. Foram três dias de
acampamento. Como sempre eu adorava. Os raposas eram unidos e pareciam uma
família quando acampavam. Eu era o cozinheiro da patrulha. Sabia que gostavam
de meus “quitutes”. Fazia tudo com presteza e as noites o Lampião a Gás
iluminava tudo em volta.
No segundo dia aconteceu um acidente. Bem não sei se foi um acidente. Fizemos
um tripé e colocamos lá o Lampião de gás e o meu Lampião Vermelho. Vi de longe
que os dois se estranhavam. Por duas vezes o lampião de gás bateu com força no
meu lampião vermelho. Ele quase caiu. Ficou quieto. Saímos para fazer um grande
jogo a tarde e só voltamos lá pelas seis já escurecendo. O Monitor gritou com
todos: - Algum animal jogou os dois lampiões no chão. O lampião gás jazia com o
vidro quebrado e camisinha em pandarecos. O lampião vermelho estava em pé e
nada quebrado e quando olhei para ele o danado sorriu.
Não ficamos no escuro à noite. Acendi o Lampião Vermelho e apesar de não ser
uma luz clara que fazia o campo ficar como o dia o danado resolveu bem o
problema. À noite eu estava sentado à beira de um pequeno fogo em frente a
minha barraca logo todos se aproximaram. Ficamos ali conversando, cantando e vi
que o Lampião Vermelho sorria. Estava feliz. Piscou para mim e por sinais me
disse: Está vendo? Afinal eu sou um lampião dos bons! Pensei comigo, metido
mesmo este Lampião Vermelho.
No outro dia enquanto fazia o café da manhã e assava uns pães do caçador, o
Monitor e mais dois da Patrulha se aproximaram. Começamos a conversar. Logo a
conversa evoluiu para o Lampião Vermelho. Todos diziam que ele dava um aspecto
mais mateiro ao acampamento. A noite ficava mais linda e as estrelas no céu
brilhavam mais efusivamente. Não tinha pensado por este lado, mas olhei para o
Lampião Vermelho pendurado próximo a nós em um tripé mais reforçado e vi que
ele balançou para um lado e outro. Sorria como sempre o danado.
Ouve outros acampamentos. Outras excursões. Lá estava o Lampião Vermelho a nos
guiar e com sua luz bruxuleante nos trazia mais próximo à natureza. Ele mesmo
nos ensinou como preparar o seu pavio para dar maior claridade. Ensinou-nos
também que a querosene devia ser colocada pela metade em seu bujão. Ensinou que
o pavio não devia ficar alto se não a chama forçava com a fumaça e iria sujar o
vidro. Notei que os outros também passaram a conversar com o Lampião Vermelho.
Por diversas vezes os patrulheiros da Raposa iam me visitar só para conversar
com o Lampião Vermelho. Ele quando era noite pedia para acendê-lo e lá fora em
frente ao meu barraco de barro, levávamos um banco de madeira e dois banquinhos
e ficávamos horas e horas conversando. Minha Avó ao longe cantava uma canção
sua predileta e olhava para nos embevecida e orgulhosa. O Lampião Vermelho
agora era mais um da raposa. Ele também contava histórias, pois nunca mais
perdeu uma atividade da patrulha.
Um dia consegui passar em um vestibular para uma faculdade. Claro, já quase
adulto e tive que ir para uma cidade grande. Iria levar minha Avó comigo, pois
sabia que ia trabalhar de dia e a noite estudar e precisava dela como ela
precisava de mim. Conversei horas e horas com o Lampião Vermelho. Vi que a
tristeza e a dor da despedida o fizeram chorar baixinho. Eu também chorei. Não
sabia o que fazer. Levá-lo comigo ou deixá-lo com a Patrulha? Dei a ele inteira
liberdade de escolher. Você decide meu querido Lampião Vermelho.
Não foi uma decisão fácil. Mas ele preferiu ficar com o novo Escoteiro que
estava na Patrulha vindo do lobinho. Vi que eles se entendiam perfeitamente.
Ele mesmo me disse que na cidade seria somente uma relíquia ou uma recordação
de um passado saudoso. Ele não queria ser uma recordação. Achava que tinha
muito ainda para iluminar as noites escuras dos acampamentos junto aos jovens
escoteiros sonhadores. Assim como foi meu amigo e iluminou meus dias de
juventude ele achava que iria ajudar em muito a nova juventude que iria
aparecer na patrulha.
O dia em que o Noviço foi buscá-lo, ele me olhou e chorou. Eu também chorei.
Disse para ele: - Lampião Vermelho você me fez chorar muitas vezes. Deu-me
muitas alegrias também. Mostrou-me novos caminhos, novos horizontes. Iluminou
minhas noites alegres e tristes. Fez de mim um homem com sua maneira honesta de
ver as coisas. Não queria perder você, mas o destino muitas vezes não nos
dá condições de escolha.
Adeus meu querido Lampião Vermelho. Adeus. Espero que faça a todos felizes como
me fez feliz por todos estes anos que ficamos juntos. Fiquei ali na porta do
meu barraco de barro, a ver o Lampião Vermelho balançar e ficar sorrindo para o
Noviço. Notei que os dois conversavam animadamente. Minha Avó veio de mansinho
e me deu um abraço. Chorei nos braços dela. Nunca mais voltei àquela cidade.
Nunca mais soube onde anda o Lampião Vermelho que fez parte da minha vida. Acho
que ainda existe e deve estar fazendo milhares de acampamentos, excursões e
vivendo uma vida feliz junto aos escoteiros que sempre amou.
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