Uma linda historia escoteira

Uma linda historia escoteira
Era uma vez...

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Do destino ninguém foge.



Conversa ao pé do fogo.
Do destino ninguém foge.

Certa vez, há muito tempo atrás, fui convidado por um Grupo Escoteiro de uma pequena cidade do interior, para proferir uma palestra sobre os Valores do Escotismo na sociedade. Era um Grupo simples, com um efetivo excelente e uma alegria e amizade que não se encontra facilmente aonde eu vou. Moças e rapazes sorridentes, me olhando respeitosos e dentro de seus olhos sentia o verdadeiro “Espírito Escoteiro” tão procurado por todos nós.

Durante a palestra, em um salão paroquial repleto, composto por muitos pais, amigos simpatizantes e até alguns membros da sociedade política da cidade, observei um chefe, que permaneceu encostado em uma parede, me olhando com olhos ávidos, prestando uma atenção canina, que fez com que me perdesse algumas vezes na continuidade da palestra. Este chefe, aparentando uns 50 anos, tinha um aspecto não muito simpático, apesar de estar muito bem uniformizado, com o caqui tradicional (um pouco velho, mas limpo e bem passado) um chapéu de abas largas bem posto, meiões dentro dos padrões e o lenço impecavelmente bem dobrado. Seu semblante deixava a desejar. Sua boca parecia inchada e uma grande mancha no rosto não dava um ar atraente a sua pessoa.

Cabelos negros, lisos e compridos, contidos por um “rabo de cavalo” simples, dava uma conotação estranha e extravagante. Tinha uma maneira de andar meio bizarra com os braços abertos, ombros curvados, mas seu sorriso era contagiante. Após a palestra, fui dar uma volta no pátio onde se realizava as reuniões, e vi ali um bom escotismo sendo praticado por uma alcatéia mista, duas tropas uma masculina e uma feminina e uma tropa sênior composta de uma só patrulha.

O chefe em questão estava em pé, observando o andamento das reuniões, sempre curvado, e esperando que alguém o chamasse. Estranhei que ele não participasse diretamente de alguma sessão. O Chefe do Grupo que me acompanhava vendo minha curiosidade explicou:- Apareceu aqui há uns quatro anos. Fica sempre afastado, pois sabe que sua fisionomia assusta os jovens e também os adultos. Com o tempo estamos nos acostumado a ele. Remo era o seu nome, o sobrenome ninguém sabia. O uniforme foi doado por um chefe que mudou desta cidade e acho que a doação foi como o descobrimento de uma grande pessoa. Sua alegria, mesmo com um sorriso torto, contagiava.

Sempre tivemos receio de convidá-lo para uma das sessões. Não fizemos sua promessa, achamos que não deveríamos. Os pais não o viam com bons olhos. Muitos ainda o julgavam pela fisionomia. Até eu acreditei que fosse analfabeto e você sabe a dúvida em colocar alguém assim em uma sessão é preocupante.  Ele é um dos primeiros a chegar à sede, faz a limpeza com esmero, fica a porta esperando que alguns de nós peçamos alguma coisa e é de uma vassalagem preocupante. No inicio das reuniões sempre está pronto a colaborar com a chefia, buscando materiais, e limpando o pátio quando alguém joga algum ao chão ou mesmo depois das reuniões.

Muitas vezes quando venho à noite à sede, o encontro sentado no meio fio, como, a saber, que eu viria. Entra comigo e enquanto faço minhas obrigações ou mesmo aguardo outros para alguma reunião, ele está a ver figuras sem parar na pequena biblioteca escoteira que temos aqui no grupo. Claro que sempre dou um livro para ele levar para casa, sempre com muitas gravuras. Ele sorri e me agradece muito. Enfim, nos acostumamos com ele, como se acostuma com um... Ele ia dizer cão amigo, mas preferiu se calar. Acho que não era sua intenção desmerecê-lo.

O pouco que sabemos é que trabalha no moinho do português (muito conhecido na cidade) e mora em um pequeno quarto alugado num bairro afastado. Achei interessante o fato. Para mim inusitado. Os anos se passaram e de novo voltei ao Grupo citado e agora não me lembro bem o motivo. Foi num verão atraente, mas cujo calor ameaçava passar dos 40º. Cheguei pela manhã, viajando boa parte da noite em um ônibus de carreira. Após os comprimentos de praxe, conversava com um ou outro escotista e foi então que dei falta do Chefe Remo. Seu lugar de sempre onde ficava encostado a parede estava vazio. Vi com espanto lagrimas nos olhos do chefe do grupo e a tristeza nos demais quando perguntei a respeito.

- Ele desapareceu um dia da sede e não voltou mais. Sentimos uma grande falta. Não tínhamos mais aquele que limpava que ficava a nossa disposição como um serviçal sem salário, nunca reclamava, estava sempre pronto a ajudar e então chegamos à conclusão que não demos o valor necessário ao um grande homem, a um grande Escotista que foi sem nunca ter sido. Todos, sem exceções sempre esperavam chegar à sede e encontrá-lo ali, subserviente, pronto a ajudar e nunca esperando nada em troca.  Até mesmo os jovens perguntavam por ele. Antes do seu desaparecimento ele já participava de pequenas atividades, mais como colaborador e assim a admiração pela sua fidalguia estava crescendo no coração de todos.

Esperamos duas semanas e fomos ao moinho onde ele trabalhava. Ficamos sabendo que ele desapareceu também de lá. Seu Manuel dono do moinho foi com a policia ao quarto dele e nada encontrou. Convidou-nos a ir até lá para vermos como era. Meu amigo foi uma punhalada no coração, pois o quarto dele era uma linda sede escoteira, com um quadro enorme de BP. Quadro de nós, de sinais, bandeirolas de semáforas penduradas na parede, uma colcha bordada com flor de Liz jazia em sua cama e uma linda Bíblia aberta na pagina onde se lia o salmo jazia acima de uma pequena cômoda. Ficamos chocados com tudo. Nunca esperávamos isto.

 Seu quarto era muito limpo e bem arrumado. Não havia cartas, papeis nada que pudesse identificar de onde era e para onde foi. O tempo passou não mais que cinco meses e ficamos sabendo que ele tinha sido atropelado em uma cidade próxima, e imprensado a um poste tinha morrido na hora. Mesmo com sua identidade não sabiam de onde era e de onde vinha. O enterraram como indigente. Ele estava com o cinto escoteiro e um dos investigadores resolveu fazer uma consulta à direção escoteira do estado. Em vão. Ele não tinha registro lá. Alguém sugeriu consultar o Grupo Escoteiro mais próximo. Conversa daqui e dalí se passaram vários meses. Um pai soube e comentou do desaparecimento do Chefe Remo. Ele o conhecia e recordava como todos ficaram preocupados. Ao confirmar a identidade, não havia mais dúvida.

Foi um choque para todos nós. Não sei por que, se foi uma boa idéia, mas reunimos todo o grupo e um dia de domingo à tarde fomos até a cidade onde havia sido sepultado. Em volta de sua campa simples, fizemos uma oração, cantamos a cadeia da fraternidade, todos chorando, engasgados dizendo com dificuldade que não era mais que um até logo, não era mais que um breve adeus, pois bem cedo junto ao fogo, tornaríamos a nos ver. Ali, com os olhos marejados de lágrimas, vimos um beija flor azulado, sozinho, batendo asas em volta do seu tumulo, e enquanto permanecemos ele também ficou, sem pousar, sem cansar. Não digo que seria um sinal, nada disto, eu mesmo não acredito. Sou meio céptico com essas coisas. Um fato não pode ser esquecido, o chefe Remo merecia ter tido muito mais de nós. Pelo menos sua promessa.

Voltamos tristes, silenciosos. Não havia canções, só as lembranças pululavam na face e no íntimo de cada um. Agora sabíamos que tínhamos conhecido um grande escoteiro, um grande chefe, mas só demos o valor quando ele se foi. Não houve promessa, não houve medalhas, não houve certificados de gratidão. Nem um simples agradecimento verbal. Só mesmo a lembrança ficou. Saudosa, dolorida e que nunca mais vai ser esquecida em nosso grupo escoteiro.

Fiquei pensando que nem sempre a escrita, a formação intelectual e docente deve ser avaliada para a escolha de um líder. Como diz o Grande Arquiteto do Universo, a muitas moradas na casa de meu pai.  Ele se sentia satisfeito com o que fazia e ali era o seu lugar. Confirmar tais indivíduos que se multiplicam por todas as plagas, dando seus valores merecidos, faz parte de nossa aceitação em chamá-los de escotistas, de chefes. Voltei para casa meditando. Era um Escotista cumpridor de seus deveres. Não almejava nada. Fazia seu trabalho sem recompensas. Era o lixeiro, o carregador, o apanhador de sonhos. Vi então que a Lei do Escoteiro também é a lei do Chefe Escoteiro.


Nunca mais voltei lá. Não porque não quis, não houve oportunidade. Mas o chefe Remo ficou marcado para sempre em minha memória.

Nenhum comentário:

Postar um comentário